1

Literatura

Áspera como a terra e uma canção de amor

Luiz Fernando Cheres

   Com o lançamento de Procura do Azul, naquele distante 1980, o cenário da Literatura de Ponta Grossa era surpreendido. O pequeno grande livro dizia um sonoro não a certas práticas assíduas por aqui: o uso de formas fixas como se fossem um cárcere obrigatório; a ditadura da rima; a preferência por termos supostamente mais poéticos que outros, mas amontoados em estrofes palavrosas; e o culto aos versos apenas descritivos, moralistas ou laudatórios. Enfim, esse livro era a negação ao vazio enclausurado em um embrulho desnecessário, apesar de correto.

         Na literatura ponta-grossense, Thereza Cristina Pusch estava inserida em uma tradição de bons poetas, vinda de Brasil Pinheiro Machado, Anita Philipovsky e Adalto Gambassi de Araújo, entre tantos autores de relevo, embora seu discurso poético fosse único. Numa época em que publicar, principalmente publicar poesia, era muito difícil e oneroso, a poeta nos deixou um só livro, Procura do Azul, ainda que tivesse outros inúmeros poemas, quase todos, infelizmente, perdidos com a morte precoce da autora. Em termos de literatura brasileira, Procura do Azul dialoga sobretudo com Manuel Bandeira e Carlos Drummond de

 

d971af4a-e33c-4c36-ae12-d7734a55f4b3.jpg

Andrade. No exterior, o diálogo mais evidente se dá com a obra de Fernando Pessoa. Convém destacar que, sendo também professora do curso de Letras da UEPG, ela acabou por participar do nascimento de toda uma geração de inspirados poetas e de leitores apaixonados pela poesia.

   Na fruição da poética de Thereza Cristina Pusch, é provável que tenha uma apreciação privilegiada o leitor com alguma intimidade com a fenomenologia de Husserl e suas implicações na literatura. Isso tudo ela costumava abordar com seus alunos, notadamente no que diz respeito à apreensão dos fenômenos pela consciência, as reduções eidética e fenomenológica, os estratos da obra literária (estudados por Roman Ingarden e, entre nós, por Maria Luiza Ramos e outros), a palavra-objeto (referida por Sartre) e a obra aberta (na concepção de Umberto Eco), entre diferentes temas. No entanto, a ausência desse prévio conhecimento não impede o deleite da leitura, ou a formulação de hipóteses interpretativas coerentes: não se trata de uma poesia hermética, dirigida apenas a críticos de literatura, mas sim de textos repletos de sugestões, musicalidade e emoção. Como eu tive a felicidade de ser aluno de Thereza Cristina Pusch, além de admirador de sua obra, acabei por me dedicar à divulgação de seu legado e apresentei seus trabalhos a leitores diversos, em situações de absoluta informalidade; desses, alguns, mesmo confessando não terem percebido muito bem “o que ela quis dizer”, ficaram visivelmente emocionados, pois acharam tudo “triste” ou “muito bonito, mas triste”, algo que a fenomenologia da literatura chamaria de intuição sensível, decorrente de fatores como o ritmo, a musicalidade e as imagens. Se, à primeira vista, os poemas de Procura do Azul possam parecer bastante simples, sem construções sintáticas rebuscadas ou palavras incomuns, como explicar a dificuldade no entendimento?

   O fingidor, esse fingidor despido por Fernando Pessoa, finge simplicidade em Procura do Azul por vários meios, tais como o uso de minúsculas e a ausência de pontuação e de títulos nos poemas. Todavia, as escolhas vocabulares e sintáticas, ainda que privilegiem o singelo, são aplicadas em versos concisos, ricos em figuras de linguagem, especialmente imagens e metáforas originais e de variadas interpretações; ao mesmo tempo, os estratos fônico e ótico estão articulados com o conteúdo e o andamento dos poemas (ou, do poema, pois, embora cada texto tenha sua individualidade, nada impede que o livro seja lido como um único poema, onde há unidade e desenvolvimento temático). Quanto às ausências de títulos e de pontuação, com certeza elas favorecem a multiplicidade de leituras, importante característica do pós-moderno.

Navegando por objetividade e subjetividade, assim como fez Fernando Pessoa, nossa poeta transita entre o mundo dito real (“um horizonte de linhas retas”) e sua expressão poética (“e esse impetuoso imenso desejo de mar”), e marca o confronto entre paisagem exterior e paisagem interior. Thereza nos traz as contradições entre o lírico e a realidade do mundo físico, entre a expressão dos mistérios do real (atividade poética) e a vivência e compreensão do real (ocupação do filósofo, mas também do cidadão comum, no seu cotidiano tão físico e material quanto fugaz); nisso, a poeta constata que ambos os termos dessa oposição são dolorosos. E nem poderia ser diferente: ao levar o real ao poema, esse real se vê transformado em poema:

 

       e já não era mais

       azul

 

       era azul pensado

       azul palavra

 

   No texto, acumulam-se metáforas: mar, ondas, barcos, horizontes. E o azul. Em torno dessas metáforas, gravitam ausências, carências, desejos, solidão, esperança. A liberdade. O amor, e um coração visto como “cais inútil”, pois é “impossível qualquer viagem”. O poema dói. Estes são os últimos versos do livro:

 

                                   à sombra de antigas cidades

                                   nasceu uma flor

                                   áspera como a terra

                                   e uma canção             

                                   de amor

 

  Procura do Azul é essencialmente lírico e traz importantes características do gênero, como as repetições, a musicalidade e certa renúncia à coerência gramatical, lógica e formal. Entre as múltiplas sugestões apresentadas ao leitor, a procura pelo azul pode ser lida como procura pela poesia, pelo amor, por uma canção de amor e, em última análise, pela consciência de. E, talvez, não vá muito além disso o que, agora, eu deveria dizer sobre Procura do Azul, já que explicar o lírico é impossível, já que a prosa será sempre incapaz de traduzir o poema. Apenas ao leitor, a cada leitor, cabem as dores e os prazeres do poema.

  TNOT SERVIÇO

  Livro - Procura do Azul

  Autora – Thereza Cristina Pusch

  Informes – Editora UEPG / 2023

  Contatos – (42) 3220-3306

  www.editora.uepg.br