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Crônicas

AS TRÊS VEZES QUE MORRI

LUIZ FERNANDO CHERES

     Na infância, sempre passávamos por um lugar chamado Rio das Almas, e esse nome perturbava. Remetia à ideia de morte, de morte no rio, era assustador, e desde menino passei a associar rio à sombra da morte, nunca à claridade da vida. Somente tempos depois, tendo morrido três vezes, fui entender: rio é sol nascente, rio não é morte.
   A primeira de minhas mortes foi num fim de tarde, quando a gerente contou que a Yonara havia ligado e, sem coragem de falar, pediu para me avisarem do ocorrido. Fazia noite em mim, e ainda fui a Curitiba, passei pelo hospital para iniciar os procedimentos de liberação do corpo e me enterrei numa longa jornada burocrática: diante de funcionários obtusos, precisei provar que Ogarenko era sim meu sobrenome pelo tronco materno, minha tia não deixara filhos, e, absolutamente, eu não teria o menor interesse em roubar um corpo em Curitiba e trazê-lo para Ponta Grossa.
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    Não consegui vestir o corpo nu da tia. Tal tarefa ficou para meu pai e para o marido de uma prima. Não era assim para eu me lembrar dela. Preferiria ter na memória a imagem de uma simpática velhinha com suas roupas simples, cuidando de mim, e não eu cuidando daquilo que até há pouco fora o corpo que guardava a vida da tia.
   Também morria a tarde na segunda vez que morri; naquele dia, a Yonara me avisou a respeito de um telefonema do hospital: alguém precisava falar urgentemente comigo. Eles jamais chamam à toa, e por isso pensei: se está tudo acabado, urgência para quê?
Ainda pude conversar a sós com meu pai, no local onde deixavam os corpos sem vida, e firmamos o pacto: “sempre juntos”. Em seguida, liguei para mamãe, e procurei parecer forte ao lhe contar que nada nos restava. No outro dia, à hora do meu sepultamento, uma chuva aguda molhava minhas lágrimas, o
barulho do dilúvio eram uivos rudes entre os túmulos, e eu agasalhava uma única verdade: a minha vida estava se fechando.
   O aviso veio pela mulher contratada para passar as noites na Santa Casa, ao lado de mamãe, na derradeira morte que morri. Eram cinco da manhã e, naquela hora, principalmente quando se tem alguém desenganado, antes mesmo de atender ao telefone, de antemão se sabe qual será a notícia.
Na última conversa particular com o corpo gelado de mamãe, foi como se, agora em definitivo, eu fosse expulso de seu útero e me visse sozinho no mundo. Porém eu não estava preparado para esse nascer doloroso e, no trajeto de meu corpo ao cemitério, tive o mais inconsolável choro da vida, deixando a Yonara preocupada, pois era eu quem dirigia o carro. No cemitério, recordo de minha primogênita se despedindo do corpo da avó, do corpo que também era o meu.
   Após, os três vieram ter comigo várias vezes. São momentos de dor, de alegria; a gente sonha, pede perdão, relembra antigas histórias, relembra o Rio das Almas e tenta em vão retomar o que para toda a eternidade já se perdeu.
   Tendo três vezes morrido, olho para a esposa, para meus filhos e netos, e enfim consigo vislumbrar alguma mínima razão para a vida. Ela é um rio que corre, escorre, rio muito curto, repleto de pedras, cachoeiras, curvas, e ali as águas violentas até parecem debochar dos poucos minutos de calmaria. Nesse rio, o menos importante é o destino das águas. O que vale, com certeza, são os peixes que o rio alimenta, os pequenos sapos, a jaguatirica bebendo água, são as flores e os espinhos da margem, o horizonte além da montanha, e as curvas, o choro, o riso, a cachaça e o mel. No rio da vida, rio das almas, o abraço e o beijo, isso sim me seduz, pois apenas isso fica depois que tudo do rio se foi.
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Luiz Fernando Cheres, escritor, autor de “Um Beijo Longe dos Lábios” e “Amar não é Preciso”, atualmente prepara seu primeiro livro de crônicas. Cheres ocupa a Cadeira 11 na Academia de Letras dos Campos Gerais.