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Conversas NO TIPO!

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Miguel Sanches Neto (Foto divulgção)

Inventar um Avô revisita a história da ‘imigração espanhola’ no Brasil

 
 
   Em Inventar um Avô, o escritor Miguel Sanches Neto, descendente de espanhóis, revisita a história da imigração espanhola no Brasil. Com mais de quarenta obras lançadas, que lhe conferem notoriedade no mercado editorial brasileiro, Sanches Neto declara que faltam romances sobre a vinda dos imigrantes da Espanha à terra brasilis. Ele também afirma que o excesso de sociologia e de autobiografia está prejudicando a literatura brasileira. Nesta entrevista exclusiva para TANOTIPO, Miguel conta como salvou uma primeira versão de seu romance, afastando-se de sua própria história e buscando valorizar a invenção ficcional (EG). 

 

   TNOT -  O romance Inventar um Avô pode ser considerado um estudo sobre a imigração espanhola em São Paulo e no Paraná?

 

   MSN - Até o ponto em que uma obra de ficção possa apresentar um panorama social, sim. O livro narra os caminhos possíveis de uma família que deixa a Espanha no começo do século XX, quando estava proibida a imigração para o Brasil, por se constatar que os estrangeiros viviam situações de trabalho análogas à escravidão. É uma narrativa de busca daqueles que se perderam nas fronteiras da cafeicultura no interior de São Paulo e do Paraná. O narrador faz um grande esforço para se aproximar de um grupo socialmente apagado.

 

   TNOT - A imigração espanhola tem uma presença significativa na literatura brasileira?

 

   MSN - Não, ela é quase invisível, mesmo tendo sido a segunda maior leva de imigrantes no país em determinado momento histórico. Conhecemos muito sobre os italianos, os alemães, os japoneses, os árabes e outras etnias, mas pouco sobre os espanhóis, que se integraram rapidamente à língua e à cultura brasileira. Faltam grandes romances sobre eles na nossa literatura.

 

   TNOT - Contou para a escrita deste romance a sua ascendência espanhola?

 

 MSN - Sempre fui identificado como espanhol, principalmente, quando era para ser qualificado como irreverente, insubmisso e teimoso. Tal visão social fortaleceu em mim este passado, sobre o qual eu conheço pouco, dos dois ramos espanhóis de minha família, os Escobar e os Sánchez. E agora, à beira dos 60 anos, escrever este romance foi uma espécie de investigação literária sobre minha gente.

 

  TNOT - E o que o senhor encontrou?

 

 MSN - Paradoxalmente, o que eu mais encontrei foram ausências. Como meus antepassados eram analfabetos e foram destinados ao trabalho braçal em lavouras de café, onde não havia escolas, obrigando assim a uma descendência sem acesso à escrita, eles não deixaram documentos nem sinal de sua passagem pelo país. Como romancista, tive que intuir ficcionalmente este tempo de diáspora. Se faltavam dados precisos, fotos, informações aduaneiras, era preciso buscar em pequenos fragmentos memorialísticos a verdade sobre esta gente pouco narrada.

 

  TNOT - O senhor conviveu com seu avô para poder retomar fatos da família?

 

  MSN - Aí está, digamos, o meu drama familiar, que tentei superar pela ficção. Eu carrego o nome de meu avô, mas não o conheci, e pouca gente de minha família o conheceu, pois morreu muito cedo. Nem sabemos onde ele nasceu, na Espanha, nem onde está enterrado no Brasil. Também perdi meu pai muito cedo, aos quatro anos, e fui criado por um padrasto mineiro. O meu acervo de memórias dos espanhóis, se é que ele existe, é muito esgarçado. Eu só podia recuperar estes acontecimentos enquanto ficção.

  TNOT – Então, o livro não conta a história específica de sua família?

 

 MSN - Passa pela história de minha família, mas não se trata de um romance sobre pessoas da família. Busquei entender como os imigrantes espanhóis desapareciam na sociedade brasileira, perdendo até mesmo a identidade da língua, logo abandonada. É um livro que mostra também a bondade, como se faz necessária a prática desinteressada do bem, da camaradagem, da superação dos traumas. Em uma época de tanto ódio, praticar o bem é ser revolucionário, ser irreverente, em uma recuperação deste excesso de opinião que marca toda etnia.

 

  TNOT - Este livro foi escrito durante a pandemia, e por isso tem esta visão mais otimista da humanidade?

 

  MSN - A pandemia apenas retardou o lançamento. O romance foi escrito entre 2015 e 2016, quando morei em Braga, Portugal. Eu estava longe do Brasil e sofria com o fato de desconhecer a história de meus antepassados espanhóis, não podia nem fazer uma visita à aldeia de onde vieram, pois não sabia de onde eles eram. Sofri para encontrar uma forma certa de narrar. A primeira versão é autobiográfica, com transcrição de trechos de meus diários. Quando terminei o livro, encaminhei para três amigos que leram com perspectivas bem diferentes: Alberto Mussa, Domingos Pellegrini e Cristovão Tezza. A partir das impressões e sugestões recebidas, decidi refazer completamente o relato, tirar o caráter autobiográfico e investir na imaginação e na linguagem. Nasceu uma outra obra, completamente diferente, em um período que vai de 2017 a 2018. De lá para cá, o livro passou por várias revisões, mas sem mudanças significativas. Então, há um outro romance desenvolvido com outras técnicas narrativas, que antecede o que está sendo publicado. Chama-se O romance de Miguel Sánchez.

 

  TNOT - Como você avalia a atuação do escritor no Brasil de hoje?

  MSN - É uma atuação muito sociológica. Se por um lado é importante que todos os grupos tenham espaço de voz na literatura, é limitador que apenas se possa narrar a partir do próprio lugar de fala. Para o ficcionista, todos os lugares narrativos são legítimos. Escrevo com a consciência alheia, em um processo de deslocamento do eu para o outro. Em uma passagem magistral de Macunaíma, de Mário de Andrade, o personagem, antes de ir para São Paulo, deixa sua consciência na Ilha de Marapatá, perto de Manaus. Quando ele volta para sua terra, não encontra sua consciência e pega a de um latino-americano. Para além da defesa de uma pátria latino-americana, esta passagem mostra que escrever ficção é sempre ocupar uma consciência que não está diretamente vinculada a nós. Com Inventar um Avô, eu quis fazer a defesa deste direito da ficção, que é criar histórias que ultrapassem as nossas experiências autobiográficas, sem deixar de tratar simbolicamente delas.

 

  TNOT - Para usar o mote do título do romance, uma curiosidade: o senhor já é avô?

 

  MSN - Não, ainda não tenho netos, preciso me inventar ficcionalmente como avô.

 

   TNOT SERVIÇO

   Título: Inventar um avô

   Gênero: romance

   Editora: Maralto - linktr.ee/maraltoedicoes

   Ano: 2023

   Número de páginas: 160