infância. Morávamos numa casa de madeira rodeada de flores e verduras no lado ímpar da Rua Júlia Lopes, na tranquila Órfãs, em Ponta Grossa. Meu quarto era contíguo ao dos meus pais. Após o jantar, quando todos já estavam recolhidos, escuridão total, minha mãe e eu rompíamos o silêncio da noite. Apesar da parede que nos separava, o som de nossas vozes alcançava uma e outra e começava o jogo de palavras proparoxítonas ditas alternadamente. Nenhuma queria desistir e encontrávamos palavras do arco-da-velha para não perder aquele jogo: médico, pêssego, cólica, lágrima, dívida, hálito, matemática, abóbora, vírgula, palavras do nosso cotidiano, até que uma das duas era vencida pelo sono, a brincadeira se encerrava e ouvia-se somente o ressonar do meu pai. Leitora contumaz, minha mãe lia o que quer que fosse e, como diz o provérbio latino, “as palavras movem e o exemplo arrasta”. Através das leituras nosso vocabulário foi crescendo e já desfilavam na brincadeira vocábulos mais sofisticados, pouco usuais como sôfrego, elíptico, lânguida, píncaro, cósmico, arquétipo, artrópode, insólito, trôpego, sândalo, mármore, flâmula, plácida, uníssono, calêndula, efêmero, diagnóstico...
A mentora desta e de outras incríveis brincadeiras se foi. A casa onde vivíamos, agora vazia, foi invadida por estranhos que furtaram a fiação elétrica, tomadas e interruptores, danificando paredes e teto. Não satisfeitos, voltaram uma segunda vez e arrancaram todos os metais. Não sobrou nada intacto, tudo foi destruído por esses seres estúpidos. Ao ver aquela cena dantesca minha indignação e repulsa explodiram em proparoxítonas: vândalos, crápulas, bárbaros, toxicômanos... A casa ficou oca, quase demolida. O número 633, em bronze, também interessou aos patifes. Com as experiências vividas muitas palavras se juntaram às já dominadas e a rede não tem ciência que embala centenas de proparoxítonas que habitam em mim enquanto relaxo no finalzinho da tarde. Não é mais um jogo, é um prazeroso e relaxante vício. Quiçá esquisito.