Minha mulher comprou uma Kombi. Só que é usada. E muito. Daquelas com repartido no para-brisa, mas ajeitadinha por dentro, o antigo dono fez uma bela reforma. Com duas crianças em casa, a patroa estava cansada de viajar no aperto, aquela economia de bagagem para acomodar tudo no porta-malas do Gol. E estávamos às vésperas das férias...
Já no primeiro encontro, olhei nos olhos da Kombi. Pareciam olhos de coruja cigana, oblíquos e dissimulados. Não gostei.
— Você dirige a Kombi, Cheres!
— Mas esse ônibus é teu.
— Não, eu vou com o Gol. Você vai com as crianças na Kombi. E não é ônibus, é Kombi. Kom-bi!
— Ué?... Você vai com o Golzinho se agora a gente tem esse ôni... essa Kombi?
— É que não coube toda a bagagem lá.
Incrédulo, examinei a monstra: entupida de tranqueiras. E o Golzinho até inchado. A Yonara sempre exagera na bagagem.
— Cheres, entenda, são duas semanas fora!
Entendi. Mas só na estrada fui compreender que nossas quatro cadelas também faziam parte da bagagem. Na Kombi. E ainda os dois canarinhos, o gato e o porquinho-da-índia. Não tive como reclamar, a Yonara já estava quilômetros à frente.
— Este ônibus é lento mesmo.
— Kombi, pai. Kombi.
Não quero repetir aqui os palavrões que gritei... Dei banho nas crianças e nas cadelas com a água mineral que levava para consumir nas férias. Só faltou água para o meu banho. Poucos quilômetros depois, também faltaria água no radiador. E agora? ...
Fiz xixi no reservatório do radiador.
E a coisa funcionou.
Mas logo depois o ônibus parou de vez. Morreu. Mortinho da Silva. Nem sinal de vida. Mais previdente, tranquei as cadelas no estrupício e saí com as crianças em direção a um barzinho de beira de estrada, a uns 20 ou 30 metros de onde empacáramos.
Problema... o bar era daqueles com biombo na entrada e, na noite, por certo teria luz vermelha. Fomos recebidos por umas mocinhas econômicas na roupa, e que não esconderam a surpresa de ver um sujeito entrando ali com duas crianças tão pequenas.
— Eu só preciso de um mecânico...
— Baby, chame o Renato da oficina. E leve as crianças junto, enquanto o doutor aqui me paga uma cuba! — disse a polaquinha que parecia gerenciar o estabelecimento.
— Não, as crianças ficam!
— Que nada, venham com a tia — insistiu a tal Baby, balançando a cinturinha de Kombi lá de dentro de um minúsculo vestidinho que não lhe escondia banhas nem estrias — venham com a tia enquanto o papai se diverte um pouco!
Nesse exato momento, decerto preocupada com minha demora na estrada, quem aparece em tão casto local?... Exatamente: ela, a Dona Encrenca.
— Eu não creio, seu Cheres! Então é só eu virar as costas e o senhor cai na gandaia! ... Jaguara, podia ao menos respeitar as crianças, seus filhos, entende, seus filhos!
A Yonara bem que acreditaria na minha história se, quando chegássemos na Kombi, a danada não tivesse funcionado. Mas funcionou perfeitamente a malandrinha. A viagem toda. E continua funcionando, oblíqua e dissimulada, nunca deu pane nem despesa. Até hoje. Estou caidinho por ela...
Luiz Fernando Cheres, escritor, autor de “Um Beijo Longe dos Lábios” e “Amar não é Preciso”, atualmente prepara seu primeiro livro de crônicas. Cheres ocupa a Cadeira 11 na Academia de Letras dos Campos Gerais.